De onde vem essa garra?

garra.jpg

“Mas é preciso ter manha, 

É preciso ter graça,

É preciso ter sonho sempre.

Quem traz na pele essa marca 

Possui a estranha mania de ter fé na vida...”  

 Milton Nascimento

Ter garra, visto como expressão de coragem e tenacidade, é muito mais do que um esforço físico para se ganhar uma luta. Nas diferentes carreiras, todos passam por momentos desafiadores e a garra surge como providencial resistência às dificuldades. Mas há fases da vida em que essa coragem de seguir em frente também se enfraquece e surge então a resiliência. 

O termo ‘resiliência’, originário da física e relacionado à propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica, tem outro significado na psicologia, como a capacidade de o indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas, encontrando soluções estratégicas para enfrentar e superar as adversidades. “É o que resta depois que tudo o mais virou pó – e quando até a garra se desgastou”, resume muito bem o psicólogo Rick Hanson, autor do livro O poder da resiliência.

A resistência está na alma

Ele dedica um capítulo especial para o tema intitulado “Garra” e já de início apresenta como abertura uma frase do famoso jogador de futebol americano, depois ator, Alex Karras (1935-2012): “A resistência está na alma e no espírito, não nos músculos”. Isso quer dizer que ser resiliente emocionalmente independe de apenas se exercitar o corpo, tornar-se fisicamente forte, mas conservar uma característica de sobrevivência que é própria da essência do ser humano, o espírito. 

 É o espírito, a alma, que vai aprendendo ao longo de suas experiências a se fortalecer através das dificuldades. E as lições oferecidas no campo profissional são indiscutivelmente excelentes oportunidades para se desenvolver essa potencialidade, seja lá qual for o desafio, individual ou coletivo, que venha a se apresentar, tanto em termos de convivência, no acerto das relações interpessoais, como de cumprimento de tarefas ou metas.

Para melhor investir na aquisição dessa resistência, não se pode perder de vista que a finalidade do espírito é a evolução e que é da natureza espiritual, portanto, buscar a superação. Daí esse impulso renovador de levantar a cabeça, analisar o passado, aprender a lição e seguir em frente. Crescer, enfim, com o aprendizado e não se colocar no lugar de vítimas de qualquer situação.

Hanson analisa os vários aspectos relacionados à resiliência, dentre os quais a importância de desenvolvermos garra para enfrentar os desafios que conhecemos e também os que nos surpreendem; e também de nos reabastecermos dessa força pelo caminho e não deixar a bateria zerar. 

Treino para a superação

Essa garra nada tem a ver com soberba ou ilusão, mas com treinamento dos que desejam se superar através do autoconhecimento e do desenvolvimento do que Hanson chama de “capacidade de ação”, por ele definida como “a noção de que podemos fazer as coisas acontecerem em vez de ficar desamparados”.

A vida apresenta suas dificuldades e, segundo o psicólogo, para que possamos aprender os diversos aspectos, é preciso que se desenvolva a determinação, a paciência e tenacidade, a aceitação dos obstáculos como incentivos para transformações. 

O poder da resiliência

Veja a seguir alguns pontos importantes relacionados por Rick Hanson sobre o tema “garra” e que fazem um convite à responsabilidade das escolhas diante dos desafios, visando auxiliar na construção de uma vida mais plena, com uma visão mais otimista. As dicas do especialista demonstram que, numa visão voltada à espiritualidade, é fácil perceber que as mudanças verdadeiras são as que acontecem de dentro para fora. 

Capacidade de ação
Ter capacidade de ação é ter a noção de ser causa, não efeito. É ser ativo, tomar a iniciativa e dirigir a vida em vez de ser levado. Essa capacidade é básica na garra. Sem ela a pessoa não consegue mobilizar outros recursos interiores para lidar com as situações.

Somos muito suscetíveis a nos apropriarmos do desamparo aprendido em situações de impotência, imobilização e derrota. A capacidade de ação é o oposto disso. A sensação de pessimismo, inutilidade e desesperança acaba com o humor, com a capacidade de lidar com as situações, além de ser um forte fator de risco da depressão. Para prevenir o desamparo, busque experiências nas quais você faz escolhas ou cujo resultado você influencia. Então concentre-se e receba a sensação de ser um agente ativo: um martelo, não um prego.

Distanciamento
Na vida, às vezes, nos distanciamos da situação que vivemos, damos uma olhada e de um jeito profundo e sincero reconhecemos que precisamos fazer uma mudança significativa. Pode ser difícil, doloroso, mas escolhemos a mudança. Isso também é capacidade de ação.

Quanto mais forte a opressão, mais importante é encontrar maneiras de experimentar alguma capacidade de ação. Se não conseguimos exercer essa capacidade “fora”, com palavras e atos, podemos fazer escolhas “dentro”, na mente.

Liberdade
O neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1970) conta uma interessante experiência depois de sobreviver ao Holocausto. “Nós, que vivíamos em campos de concentração, nos lembramos dos homens que andavam pelas barracas consolando os outros, dividindo seu último pedaço de pão. Podiam ser poucos em número, mas são prova suficiente das liberdades humanas, a de escolher a própria atitude em qualquer circunstância, traçando o próprio caminho.”

Cuidar das causas
É preciso se concentrar nas circunstâncias em que temos capacidade de ação. Podemos comer alimentos nutritivos, nos exercitar e ir ao médico, e mesmo assim adoecer. Ainda que não possamos criar diretamente o que queremos, podemos estimular os processos que façam isso acontecer. Saber disso traz tanto uma sensação de responsabilidade quanto de paz. Em termos de responsabilidade, cabe a cada um de nós cuidar das causas que podemos influenciar e usar a capacidade de ação de que dispomos.

Lidar com a frustração
Permanecemos presos a resultados específicos e ficamos frustrados, tomados pela autocrítica, quando eles não vêm. A verdade é que muitas coisas anteriores levaram a esses resultados; a maioria está além do controle de qualquer um. Reconhecer e aceitar esse fato pode parecer alarmante, mas trará alívio da tensão e da sensação de que precisa ter controle sobre as coisas, dando lugar à serenidade.

Determinação
Situações desafiadoras acontecem a todo mundo e a determinação é a força mental inabalável na qual nos apoiamos para suportá-las e sobreviver a elas.

É possível estar ferido e fragilizado... e ser muito determinado. A determinação talvez pareça sombria, mas na verdade pode ser divertida e despreocupada.

A determinação tem quatro aspectos: resolução, paciência, persistência e “ferocidade”. Ao longo do dia, você pode transformar experiências desses aspectos numa sensação ainda mais forte de determinação.

Resolução
A resolução é voltada para uma meta. Não a possuir é como um carro com motor possante sem ter aonde ir. É claro que precisamos ser adaptáveis na busca por nossas metas. Se somos exigentes demais com pequenos detalhes, corremos o risco de perder de vista o fim, por estarmos fixados nos meios.

A verdadeira resolução é como velejar contra o vento, navegando em zigue-zague para chegar ao destino. É preciso coragem ao longo do caminho, sob risco da resolução esfriar e se tornar opressiva. A resolução inclui paixão, fervor e até mesmo alegria.

Paciência
Muitos erros são frutos da impaciência, mas ter paciência não significa ignorar os problemas. A vida é cheia de atrasos e desconfortos e, às vezes, temos simplesmente que esperar. A paciência talvez pareça uma virtude singela, mas é a essência de dois fatores primordiais da saúde mental e do sucesso na vida. O primeiro é o adiamento da gratificação, a disposição para descartar recompensas imediatas em nome de uma recompensa futura maior. O segundo é a tolerância à angústia, a capacidade de suportar uma experiência dolorosa sem piorar as coisas.

Persistência
Aconteça o que acontecer, você ainda pode persistir por si mesmo, mesmo que seja só dentro da sua cabeça. Mesmo que seu esforço não traga resultados, no fundo você saberá que tentou, o que é reconfortante e honroso.

Geralmente, são os esforços pequenos, constantes e pouco radicais os que mais fazem diferença ao longo do tempo. É possível realizar grandes coisas persistindo nas pequenas ações. Às vezes, é mais importante persistir em seus pensamentos e sentimentos. Passos pequenos fazem a pessoa avançar.

Cuidar do corpo
A saúde física é também um grande auxílio à resiliência, e as ameaças mais importantes à segurança são ameaças ao corpo. Tenha uma alimentação nutritiva e equilibrada. Durma bem à noite. Faça exercícios regularmente. Minimize ou elimine o uso de substâncias tóxicas. Avalie e trate possíveis problemas de saúde sem demora. A maioria das pessoas sabe o que deve fazer. O segredo é aproveitar a capacidade de ação e a determinação para colocar em prática esse conhecimento.

É muito fácil dizer “começo amanhã”. Mas os amanhãs vão se acumulando, e assim passam-se anos. É motivador perceber que estamos todos avançando e a pista está acabando, que é hora de mudar algo que possa acrescentar anos de qualidade à nossa vida. Não adie ações sensatas a favor da saúde física. Sempre parece mais fácil começar amanhã. Em vez disso, pergunte-se: “O que posso fazer hoje?”

Referência:

Rick Hanson. O poder da resiliência. Sextante. 

Eliana Haddad

Correio.news